viernes, 11 de abril de 2014

O Futuro do Trabalho

Publicada em 22/08/2010 pela Revista Época. Autores: David Cohen, Mauro Silveira e Marcos Coronato.

"Como qualquer prática cultural humana, o modo como trabalhamos sofreu profundas modificações ao longo da história. Os trabalhadores que ergueram as pirâmides do Egito levavam chibatadas. Escravos cultivavam as plantações brasileiras do século XVIII. Nas primeiras fábricas da Inglaterra, crianças trabalhavam de manhã até a noite. Na maior parte do século XX, a produção foi dominada pela linha de montagem e seus operários robotizados. Envolvidos com nosso dia a dia, podemos não perceber, mas o mundo do trabalho se transformou completamente.

A chave para essa mudança tem dois lados. O primeiro deles abriu a cabeça das pessoas. No mundo atual, o trabalho mais valorizado não é o braçal, mas sim o intelectual. E o trabalho intelectual exige o engajamento do funcionário. Não é possível obrigá-lo a pensar, como era possível obrigá-lo a carregar pedras ou apertar parafusos. Num mundo assim, há um prêmio para as empresas que conseguem motivar as pessoas a dar ideias e realizá-las com entusiasmo.

O segundo lado da chave abriu a porta das empresas. Numa era de concorrência acirrada (e global), num regime democrático, as pessoas são livres para procurar emprego no lugar que considerem mais adequado. Ainda mais com uma economia em expansão, como é o caso do Brasil - estima-se que a economia crescerá 7% neste ano e mais de 4% no próximo; ao longo de 2010 deverão surgir 2 milhões de novos empregos no país.

A diferença entre o mercado de trabalho de hoje e o de nossos pais ou avós é enorme, mas deverá crescer ainda mais s nos próximos anos. As mudanças já estão ocorrendo. E não há melhor lugar para observá-las do que a lista das 100 Melhores Empresas para Trabalhar, divulgada pelo Instituto Great Place to Work (GPTW) e por ÉPOCA numa cerimônia em São Paulo na segunda-feira dia 16 (leia o quadro abaixo e a tabela). São empresas de ponta, em diversos setores da economia e regiões do país, convencidas de que o talento das pessoas é seu principal recurso para o sucesso. Por isso, elas adotam práticas que lhes permitem atrair, motivar, preparar e reter os melhores profissionais possíveis. Os funcionários - os juízes primordiais da lista, pois suas notas para a empresa, enviadas em sigilo para o GPTW, definem dois terços da pontuação final - aprovam as práticas que mais lhes agradam, numa espécie de seleção natural. A evolução dessas práticas está moldando o futuro do mercado de trabalho.

Tome, por exemplo, o horário de trabalho. No mundo do emprego intelectual, ele é um fóssil de uma era antiga. Ideias não batem cartão de ponto. É por isso que várias das melhores empresas adotam o horário flexível. Não quer dizer que elas pagam as pessoas para se divertir. Ao contrário, o fim da fronteira entre vida pessoal e vida profissional pode até aumentar o estresse. Mas elas dão autonomia ao trabalhador. A liberdade só funciona se vier acompanhada de metas, outra prática adotada por várias das 100 melhores.

Nas 100 Melhores, o tratamento do pessoal está afinado com a estratégia de negócios e com a cultura

Empresas que cativam gente autônoma têm de ser, elas próprias, encantadoras. Daí os benefícios diferenciados, a criteriosa escolha dos funcionários, as inúmeras ocasiões de reconhecimento e premiação, o desenvolvimento constante de seu pessoal. Um exemplo de todas essas práticas combinadas é (não por acaso) a empresa campeã da lista deste ano, o Google (leia a reportagem).

Só nos últimos quatro anos, a empresa que desenvolveu o mais famoso buscador da internet foi campeã da lista GPTW na Itália, França, Holanda, no Reino Unido, na Austrália, no Canadá, na Polônia, Suíça e Índia. O modelo Google é diferenciado e difícil de reproduzir em outras organizações. "Acredito, no entanto, que ele será a grande tendência da gestão de pessoas no futuro, pois favorece os profissionais criativos e transforma a organização num laboratório de ideias", diz José Tolovi Jr., presidente mundial do Great Place to Work. "Toda empresa sonha com isso."

Não quer dizer que toda empresa será parecida com o Google. Uma das características da lista das 100 Melhores é justamente a diversidade. O que elas têm em comum é que o tratamento de seu pessoal está afinado com sua estratégia de negócios e, acima de tudo, com sua identidade, sua cultura, sua marca. São, cada uma a seu modo, empresas inovadoras e uma fonte de inspiração para as demais.

Há, porém, tendências gerais. Uma delas é a flexibilidade. Na Algar Mídia, de Uberlândia, Minas Gerais, não existe pressão por causa do horário de trabalho. É possível entrar mais tarde, sair mais cedo e até tirar o dia para descansar, desde que o empregado combine isso com o chefe. Em vez de controlar as horas trabalhadas, a Algar Mídia se preocupa com o que interessa: o trabalho a ser feito. O laboratório farmacêutico AstraZeneca, na Grande São Paulo, emenda com o fim de semana todos os feriados que caem na terça ou na quinta-feira - sem exigir compensação desses dias nem descontar as horas não trabalhadas. A ideia é permitir que o funcionário tenha mais tempo para a família e o lazer e volte revigorado para suas tarefas. Na BgmRodotec, do Rio de Janeiro, especializada em tecnologia para o setor de transportes, as mães com crianças pequenas têm direito a cinco dias de folga para fazer a adaptação do filho na creche. Na Chemtech, de engenharia, também no Rio, a licença-paternidade dura 15 dias.

A Chemtech é também um exemplo de inovação na forma de contratar. A área responsável pelo recrutamento não é composta de psicólogos, como na maioria das empresas, e sim de engenheiros, como em quase toda a empresa. Por terem o perfil do grupo, eles selecionam mais facilmente os candidatos mais adequados à cultura da Chemtech. Além disso, a empresa tem parcerias com universidades em todo o país. Seus engenheiros dão aulas especiais e, enquanto ensinam, procuram identificar os alunos mais talentosos e aptos para o trabalho sob pressão. Estes são s convidados para trabalhar, depois treinados. "As organizações estão descobrindo que não adianta contratar um gênio que só trabalha dentro de um casulo e ignora o coletivo", diz Tolovi. "Um dos fatores que geram mais resultados positivos é o trabalho em equipe, e isso só é possível quando você tem pessoas com valores, princípios e características pessoais parecidos."

A Kaizen, consultoria de tecnologia baseada em Indaiatuba, São Paulo, reverteu a perda de funcionários para outras empresas ao pedir que os empregados indicassem pessoas com a cara da organização. A ideia surgiu de uma constatação: ninguém melhor do que os próprios funcionários para dizer se determinado candidato se encaixa ou não na equipe. Para estimulá-los, passou a recompensar financeiramente aqueles que apresentassem candidatos que fossem efetivados. Várias empresas estão adotando essa estratégia, como Zanzini, Unimed Missões, Accor, BV Financeira e o próprio Google. Algumas seguem a mesma estratégia da Kaizen e dão recompensas em dinheiro para quem faz a indicação. Algumas preferem oferecer prêmios como televisão, computadores, iPods e DVDs. Outras fazem apenas um agradecimento formal em público.

Investir em cursos e treinamentos para os empregados também é uma tendência destacada entre as 100 Melhores. O curso geralmente é definido com base nas deficiências profissionais do funcionário identificadas na avaliação anual. Muitas vão além e ajudam o empregado a estudar qualquer tema de seu interesse, por apostar que esse estímulo intelectual melhora a disciplina, a criatividade e a qualidade de vida do beneficiado.

A empresa de entregas FedEx oferece reembolso integral ao funcionário em cursos relacionados ao trabalho e descontos para os familiares que queiram participar. Mais: cada empregado tem direito a uma verba anual de US$ 1.500 para gastar com educação de qualquer tipo. A empresa já subsidiou cursos de teologia, química e educação física. O Magazine Luiza separa R$ 700 mil para essa finalidade. Não se trata de caridade. A Associação Brasil América, instituição educacional do Recife, Pernambuco, dá aos funcionários, seus filhos e cônjuges cursos de inglês, ensino infantil e fundamental bilíngue. A Pormade, fábrica de portas do Paraná, oferece cursos profissionalizantes para as mulheres de seus funcionários - o que ajuda a complementar a renda familiar.

Essas empresas acreditam que o estudo, mesmo se não tiver aplicação prática imediata, torna as pessoas mais capacitadas (além de agradecidas à empresa). Tal filosofia não beneficia só as empresas, mas o mercado de trabalho como um todo.

O treinamento não se dá apenas com cursos. No hotel JW Marriott, todo funcionário novo é hóspede por uma noite - e experimenta o serviço que deverá ajudar a prestar aos clientes. Na Sydle, um funcionário mais experiente e capacitado é destacado para orientar um funcionário mais jovem ou numa nova função.

Outra característica das 100 Melhores é a preocupação que elas demonstram em reconhecer o profissional que se destaca e cumpre as metas. A desenvolvedora de programas de computador Oracle tem um programa de participação nos resultados que paga até 6,5 salários adicionais no ano para quem entrega os resultados desejados. No caso dos gerentes, esse valor pode chegar a 12 salários extras. A Algar Telecom oferece na saída de férias uma gratificação adicional de um salário.

Várias empresas dão subsídio para o funcionário estudar qualquer tema de seu interesse

Dinheiro não é a única forma de reconhecimento. A Embraer, em São José dos Campos, São Paulo, criou o Dia Azul, que acontece a cada dois meses. Nessas ocasiões, o presidente e os funcionários conversam sobre um dos seis valores da empresa. No final do dia, as pessoas que mais refletiram a prática do valor naquele período ganham uma maquete dos aviões da Embraer e concorrem a um sorteio de voo num ultraleve. A CP Promotora, de crédito pessoal, em São Paulo, presenteia s com carro e viagens internacionais os profissionais que mais se destacam no ano.

As empresas da lista estão também atentas às necessidades pessoais do funcionário. A Brasilcap, de capitalização, tem uma linha de telefone 0800 para prestar assessoria psicológica, jurídica e nutricional aos empregados e familiares. O Hotel Colina Verde banca a moradia no centro da cidade de São Pedro, em São Paulo, para os empregados que moram longe. A NetSolutions, com sede na capital paulista, tem um programa que estimula os filhos dos funcionários a escrever o que desejam ganhar no Natal. A cada ano, ela seleciona as melhores cartas e realiza o sonho de duas crianças. E a fabricante de autopeças Jost, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, mantém para seu pessoal um clube de campo com 28 hectares de área verde, quadras de vôlei, campos de futebol, quiosques para churrasco e áreas para caminhada.

Essas práticas fazem todo o sentido: a empresa trata bem seus funcionários, eles trabalham melhor e a empresa lucra mais. Mas, embora as 100 Melhores Empresas para trabalhar tenham consistentemente resultados financeiros melhores que a média do mercado, nem todo mundo acredita nessa lógica. Um dos argumentos dos céticos é que as empresas não necessariamente obtêm melhores resultados porque são boas para trabalhar. Talvez seja o contrário: por serem mais ricas é que elas podem investir em benefícios melhores e tratamento cordial.

Infelizmente, as empresas que não dão suficiente atenção às pessoas ainda são maioria. É questão de tempo. Apenas algumas décadas atrás, as empresas mais admiradas eram hierarquizadas e funcionavam como máquinas. Hoje, as companhias de sucesso são vistas como organismos vivos, que precisam lidar com conceitos tão etéreos quanto fundamentais, como valores, sustentabilidade e conhecimento. "O que se vê tradicionalmente no mercado são as pessoas tendo de se adaptar às empresas", diz Tolovi, do GPTW. "As 100 Melhores mostram outro caminho. São empresas que também se esforçam para se adaptar ao seu pessoal."


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